Mais de 2,4 milhões de crianças brasileiras sofrem abuso com as piores formas de trabalho infantil

A situação de um dos maiores desafios sociais do país só tende a piorar com a pandemia de Covid-19.

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“Quando eu era criança, eu tinha o sonho de estudar, mas não tive oportunidades. Eu chorava para ir à escola”, conta a paraibana Maria das Dores Clementino. O fato de trabalhar desde muito cedo na roça e com a enxada acabou por impedi-la de realizar o seu grande sonho de tornar-se professora. Quando finalmente pôde ser matriculada em uma escola pública, a menina Maria percebeu que não tinha mais forças nem tempo para os estudos, pois além do pesado trabalho no campo, ainda precisava ajudar com as tarefas domésticas.

A história de Maria das Dores é semelhante à de milhões de brasileiros cujo direito a uma infância saudável vem sendo comprometido pelo trabalho infantil, considerado um dos problemas sociais mais graves do país. De acordo com os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2016, havia 2,4 milhões de crianças e adolescentes, entre cinco e 17 anos, que trabalhavam em todo o território nacional, tanto na área urbana quanto rural. Desse universo, como destaca o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, “1,7 milhões também exerciam afazeres domésticos de forma concomitante ao trabalho e, provavelmente, aos estudos”. Segundo o levantamento, as regiões Nordeste e Sudeste registram os números mais expressivos de crianças trabalhando, respectivamente, 33% e 28,8% do total.

As atividades mais comuns são exercidas nas áreas dos serviços domésticos, agricultura, construção civil, lixões, mendicância e tráfico de drogas, consideradas como as piores formas de trabalho infantil.

Outra forma grave e bastante comum do uso da mão de obra de menores no país está relacionada à exploração sexual de crianças e adolescentes. Segundo uma recente pesquisa, feita pela Polícia Rodoviária Federal com o apoio de várias instituições, existiam mais de 2.487 pontos vulneráveis à prostituição infantil nas rodovias e estradas federais de todo o Brasil, apenas entre os anos de 2017 e 2018.

O coronavírus e o trabalho de menores

Se antes da Covid-19 a situação do trabalho infantil já era um dos maiores desafios sociais do país, a tendência é que se agrave com a pandemia. Com o desemprego acelerado pela crise econômica e o súbito fechamento das empresas, há um enorme risco de que mais crianças sejam incumbidas pelos pais com o pesado fardo de ajudar a sustentar precocemente a família. Para piorar a quadro, as escolas deixam de funcionar fisicamente, o que torna os menores mais suscetíveis ao trabalho forçado. É o que mostra o relatório apresentado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre como “A pandemia pelo Covid-19 poderia incrementar o trabalho infantil na América Latina e Caribe”.

O documento prevê, ainda, que até o final de 2020, o coronavírus seja capaz de levar 29 milhões de pessoas à pobreza nessas regiões, o que deixaria os menores ainda mais expostos à insegurança social e, consequentemente, ao trabalho infantil.

Parece normal, mas não é

Pelas cidades do Brasil, já se tornou rotina ver aquela menina pequena que trabalha na feira ao lado dos pais. Ou o menino que vende bala nos faróis, para em seguida levar o dinheiro recebido até à mãe, que espera por ele sentada à sombra do outro lado da rua.

Para a desembargadora Maria Zuila Dutra, gestora nacional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho, o problema da ocupação laboral precoce é grave no país porque parte da sociedade brasileira considera natural o fato de testemunhar crianças exercendo tarefas de adultos.

Segundo a desembargadora, há uma cultura de mitos existente desde a época da colonização, relacionada à inaceitável herança da escravidão, que insiste em cultivar pensamentos absurdos para justificar o trabalho de crianças, como “é melhor trabalhar do que ficar na rua”, “trabalhar não mata ninguém” ou “é melhor trabalhar do que roubar”.